quarta-feira, 8 de julho de 2009

O DONJUANISMO

Se amar bastasse, as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, mais se consolida o absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher por falta de amor. É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação e esse aprofundamento. Por isso, cada uma delas espera lhe oferecer o que ninguém nunca lhe deu. Em todas as vezes elas se enganam profundamente e só conseguem fazê-lo sentir necessidade dessa repetição. "Por fim", exclama uma delas, "te dei o amor." Não surpreende que Don Juan ria dela: "Por fim? Não" - diz ele -, "outra vez." Por que seria preciso amar raramente para amar muito?

Don Juan está triste? Não é verossímil. Quase não vou apelar para a crônica. Esse riso, a insolência vitoriosa, os pulos e o gosto pelo teatro são coisas claras e alegres. Todo ser saudável tende a se multiplicar. Don Juan também. Mas, além do mais, os tristes têm duas razões para estar tristes, eles ignoram ou eles têm esperança.

Don Juan sabe e não tem esperança. Faz lembrar esses artistas que conhecem seus limites, nunca os ultrapassam e, no intervalo precário onde seu espírito se instala, possuem a maravilhosa facilidade dos mestres. E está justamente aí o gênio: a inteligência que conhece suas fronteiras. Até a fronteira da morte física, Don Juan ignora a tristeza. A partir do momento em que sabe, seu riso explode e consegue que tudo lhe seja perdoado. Foi triste no tempo em que esperou. Hoje, na boca dessa mulher, torna a encontrar o sabor amargo e reconfortante da ciência única. Amargo? Quase: essa necessária imperfeição que torna perceptível a felicidade!

É um grande engano que perdê-la. Esse louco

'"o pretender ver em Don Juan um homem que se nutre do Eclesiastes. Porque, para ele, a única vaidade é a esperança de outra vida. Ele o prova, porque aposta contra o próprio céu. O lamento do desejo perdido no deleite, esse lugar comum da impotência, não lhe pertence. Isto funciona para Fausto, que acreditou suficientemente em Deus para se vender ao diabo. O "Trapaceiro" de Tirso de Molina responde sempre às ameaças do inferno: "Que prazo grande você me dá!" O que vem depois da morte é fútil, e que longa série de dias para quem sabe que está vivo! Fausto exigia os bens deste mundo: o infeliz só precisava estender a mão. Já era vender sua alma o fato de não saber desfrutar dela. Don Juan, pelo contrário, busca a saciedade. Se abandoa uma bela mulher não é de maneira alguma porque não a deseje mais. Uma bela mulher sempre é desejável. Mas acontece que, nela, deseja outra coisa, o que não é a mesma coisa.

Esta vida o completa, não há nada pior que perdê-la

esse louco é um grande sábio. Mas os homens que vivem de esperança se sentem pouco à vontade nesse universo onde a bondade cede seu lugar à generosidade, a ternura ao silêncio viril, a comunhão à coragem solitária. E todos dizem: "Era um fraco, um idealista ou um santo." É preciso rebaixar a grandeza que insulta.

O discurso de Don Juan provoca bastante indignação (ou a risada cúmplice que degrada aquilo que admira), assim como aquela frase que serve para todas as mulheres. Mas, para quem busca a quantidade de prazeres, só interessa a eficácia. Para que complicar as formulas que funcionaram bem? Ninguém, a mulher ou homem, as ouve, só ouvem a voz que as pronuncia. São a regra, a convenção e a cortesia. Elas são ditas, e depois o mais importante ainda falta fazer. Don Juan já se prepara para isso. Por que teria um problema moral? Não é condenado por desejo de ser santo, como o Mafíara de Milosz, O inferno para ele é coisa provocada. Só há uma resposta para a cólera divina: a honra humana: "Sou um homem honrado", diz ele para o Comendador, "e cumpro minha promessa porque sou um cavalheiro." Mas seria um erro igualmente grande considerá-lo um imoralista. Neste sentido, ele é "como todo mundo": tem a moral de sua simpatia ou sua antipatia. Para entender bem Don Juan, é preciso referir-nos sempre ao que ele simboliza vulgarmente: o sedutor comum e o mulherengo. Ele é um sedutor comum[1]. I Com uma diferença: é consciente, e portanto é absurdo.

Um sedutor que adquiriu lucidez não mudará por isso. Seduzir é sua condição. Somente nos romances as pessoas mudam de condição ou se tornam melhores. Mas pode-se dizer que ao mesmo tempo nada mudou e tudo se transformou. O que Don Juan põe em prática é uma ética da quantidade, ao contrário do santo) que tende à qualidade. A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas. Ele percorre, armazena e queima os rostos calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo. Don Juan não pensa em "colecionar" mulheres. Esgota seu número e, com elas, suas possibilidades de vida. Colecionar é ser capaz de viver do passado. Mas ele rejeita a nostalgia, essa outra maneira da esperança. Não sabe contemplar os retratos.

Será por isso egoísta? À sua maneira, sem dúvida. Mas, também aqui, precisamos nos entender bem. Há gente que é feita para viver e gente que é feita para amar. Don Juan, ao menos, diria isto de bom grado. Mas para escolher precisaria de um atalho. Parque o amor de que ele fala é aqui adornado com as ilusões do eterno. Todos os especialistas em paixão nos ensinam isso, não há amor eterno a não ser o contrariado. Não existe paixão sem luta. Um amor assim se termina com a última contradição, que é a morte. Você tem que ser Werther, ou nada. Aí também há várias maneiras de suicidar

se, uma das quais é a doação total e o esquecimento da própria pessoa. Don Juan, como qualquer um, sabe que isso pode ser emocionante. Mas ele é dos poucos a saber que não é o mais importante. Sabe muito bem: aqueles que são afastados de toda a vida pessoal por um grande amor talvez se enriqueçam, mas certamente empobrecem os escolhidos pelo seu amor. Uma mãe, uma mulher apaixonada têm necessariamente o coração seco, porque afastado do mundo. Um único sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo acaba devorado. É outro amor o que faz Don Juan estremecer, e este é libertador. Traz consigo todos os rostos do mundo e seu tremor provém de saber se perecível. Don Juan escolheu não ser nada.

Para ele, a questão é ver claro. Só chamamos de amor o que nos une a certos seres por influência de um ponto de vista coletivo gerado nos livros e nas lendas. Mas do amor só conheço a mistura de desejo, ternura e entendimento que me liga a determinado ser. Tal composto não é o mesmo em relação a outro. Não tenho o direito de revestir todas essas experiências com o mesmo nome. Isto dispensa de realizá-las com os mesmos gestos. Também aqui o homem absurdo multiplica o que não pode unificar. Assim, descobre uma nova maneira de ser que o libera tanto quanto libera o próximo. Não há amor generoso senão aquele que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular. São todas essas mortes e esses renascimentos que constituem para Don Juan o eixo de sua vida. É a maneIra que ele tem de dar e de fazer viver. Será que se pode falar de egoísmo?

Penso agora em todos os que desejam um castigo para Don Juan seja como for. Não apenas na outra vida, mas também nesta. Penso em todas as histórias, lendas e brincadeiras sobre Don Juan envelhecido. Mas Don Juan está preparado para isso. Para um homem consciente, a velhice e o que esta pressagia não é nenhuma surpresa. Ele é consciente dela na medida em que não oculta de si mesmo o seu horror. Em Atenas havia um templo consagrado à velhice, aonde levavam as crianças. No caso de Don Juan, quanto mais se ri dele, mais se destaca sua figura. Ele recusa, assim, a imagem que os românticos lhe atribuíram. Ninguém quer rir desse Don Juan atormentado e lastimável. Têm compaixão dele, será que o próprio céu o redimirá? Mas não se trata disso. No universo que Don Juan vislumbra, o ridículo também está incluído. Ser punido lhe parece normal. É a regra do jogo. E sua generosidade consiste, justamente, em ter aceito inteiramente a regra do jogo. Mas ele sabe que tem razão e que não pode tratar-se de castigo. Um destino não é uma punição.

Este é o seu crime, e se entende que os homens do eterno exijam um castigo. Don Juan chegou a uma ciência sem ilusões que nega tudo o que eles professam. Amar e possuir, conquistar e esgotar, eis sua maneira de conhecer. (Tem sentido esta escolha das Escrituras, que chamam de "conhecer" o ato do amor.) Na medida em que ignora, é pior inimigo deles. Um cronista informa que o verdadeiro "Trapaceiro" morreu assassinado por franciscanos que quiseram "dar fim aos excessos e impiedades de Don Juan, cujo nascimento garantia a sua impunidade". E depois proclamaram que o céu o tinha fulminado. Ninguém provou esse estranho fim. Ninguém tampouco demonstrou o contrário. Mas mesmo sem questionar se isso é verossímil, posso dizer que é lógico. Quero grifar aqui o termo "nascimento" e jogar com as palavras: o que garantia a sua inocência era viver. Só na morte ele adquiriu uma culpa, agora lendária.

Que outra coisa significa o Comendador de pedra, essa fria estátua animada para castigar o sangue e a coragem que ousaram pensar? Nele se resumem todos os poderes da Razão eterna, da ordem, da moral universal, toda a grandeza externa de um Deus acessível à cólera. Essa pedra gigantesca e sem alma simboliza apenas os poderes que Don Juan sempre negou. Mas a missão do Comendador pára aí. O raio e o trovão podem voltar ao céu fictício de onde foram chamados. A verdadeira tragédia se desenrola à margem deles. Não, Don Juan não morreu sob uma mão de pedra. Prefiro acreditar na bravata lendária, na risada insensata do homem sadio provocando um deus que não existe. Mas acredito"principalmente, que na noite em que Don Juan estava esperando na casa de Ana, o Comendador não apareceu e o ímpio deve ter sentido, depois de meia-noite, a terrível amargura daqueles que tiveram razão. Aceito ainda melhor o relato de sua vida que o mostra, ao final, encerrado num convento. Não é que se possa considerar verossímil o lado edificante da história. Que refúgio pedir a Deus? Mas isto representa antes a culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de absurdo, o desenlace feroz de uma existência dedicada a alegrias sem futuro. O gozo termina aqui em ascese. É preciso entender que ambos podem ser as duas faces do mesmo desenlace. Que imagem mais assustadora desejar: a de um homem a quem seu corpo trai e que, por não ter morrido a tempo, consuma a comédia esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora, servindo-o como serviu a vida, ajoelhado diante do vazio com os braços estendidos para um céu sem eloqüência e, como ele sabe, também sem profundidade.

Vejo Don Juan numa cela daqueles monastérios espanhóis perdidos numa colina. Se ele olha para alguma coisa, não é para os fantasmas dos amores passados, mas, talvez por uma seteira ardente, para alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e sem alma onde se reconhece. Sim, é preciso fazer um alto diante dessa imagem melancólica e radiante. O fim último, esperado mas nunca desejado, o fim último é desprezível.




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